terça-feira, 8 de janeiro de 2008

"Elogio ao Amor"

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro.
Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides,borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso
"dá lá um jeitinho sentimental".

Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice,facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo
ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.


O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe.


Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por
muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.


Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder.

Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."


Miguel Esteves Cardoso in expresso

6 comentários:

Sights and Smiles disse...

Este Miguel Esteves Cardoso às vezes ate tem razao... Mas so às vezes! Ate' porque eu nem aprecio muito o homem... a verdade e' que ele sabe o que diz.. hoje em dia o amor é uma coisa, e a vida é outra. Parece que nos dias de hoje é preciso parar de viver para começar a amar... E se calhar eh mesmo! Para começar a amar, quem tem de "fechar a loja" é a vida...
Texto lindo, sorriso meu. Gostei muito.
Beijinho no nariz da cor da amizade*

Ana Rita Valente disse...

(ainda ontem estive com esse texto diante dos olhos, mas não tive pachorra para o ler... hj, talvez por estar aqui, decidi debruçar-me sobre ele...)

Consegui fixar-me naquela parte em que o senhor diz que "as pessoas se apaixonam por uma questão de prática"... de facto, nunca fui capaz de ver as coisas dessa forma (em mim... já que só posso falar por mim...)... mas a sociedade "estranha" que temos faz-se de encontros furtivos e paixões avassaladoras hoje, que amanhã já-não-são-tanto-assim... e, é uma facto (o senhor tem a sua razão...) que combinamos o amor... mas, e se por um lado, essa combinação torna o amor demasiado "humano"...
por outro lado, dessa forma, sabemos com o que contar... e todos gostamos de um pouco de "previsibilidade"... até no amor... por isso, quando se fala em algum "acomodamento" (nem sei se isto existe!) às situações, eu entendo... porque entendo que o amor cego, puro, estupido, doente, verdadeiro é tudo isso quando é SÓ nosso... quando o partilhamos (o que nem sempre acontece...) torna-se também compreensões, algumas conveniências... o problema está quando nos esquecemos (ou quando deixamos partir...) esse amor que em nós existe (o tal puro, cego, estupido, doente e o diabo-a-sete!)... e quando as conveniências (da vida...) nos consomem...

mas, como o senhor Miguel Esteves Cardoso diz (e muito bem, na minha opinião...) o amor não é para perceber (se fosse muita coisa seria diferente... mas dizem que não tinha tanta "piada"...)... e quando o homem tenta compreender e integrar o amor, deixa de amar...
e nós, seres humanos, estamos constantemente a cair nessa armadilha... tentamos compreender tudo... o amor, a vida... e, tanto tentamos, que acabamos por criar tal baralhação que nos "estoira" com o amor que larga tudo pra ir atrás-de-qualquer-coisa...

acho que nem se devia falar de amor... porque, apenas, está...

e é como diz a Deolinda (e, como somos todos Deolindas...): "eu não sei falar de amor...)

tenho uma certa ideia de que quem escreveu (e quem leu...) este texto tentou compreender o amor (eu fiz isso, confesso...)...

um beijo grande e um abraço forte... (com um amor, daqueles que não se entende, misturado...)

Inês Rosa disse...

Possas possas...

Mil beijinhos para ti

Celinha 007 =) disse...

Eu comecei a ler o texto e acredita que pensei que fosses mesmo tu a falar. Eram perfeitas as palavras e eram perfeitas as ideias. Tinham tudo a ver contigo e aquilo que eu acho que tu pensas acerca do amor. :) (Aquela looooooonga conversa deu em kk koisa :P) Mas eu concordo perfeitamente com o que ele diz. Eu sinto falta desse amor... Das loucuras, da estupidez, da doença, da maluquice que acabamos por ganhar quando amamos assim.. Tende tudo a acomodar-se mas eu nunca vou conseguir aceitar isso. Não aceito comigo logo não posso aceitar com os outros. Mas também é preciso muita coragem para amar assim e lutar por esse amor. As pessoas hoje em dia têm medo de serem xamadas de dementes. Tido o que foge á regra é encarado pela sociedade como demência e exibição. Já ninguém se tenta entender. Tudo critica. Tudo põe abaixo em vez de ajudar a levantar. Por isso as pessoas também se tendem a resguardar um pco. Hoje em dia é kase impossivel encontrar alguém que seja verdadeiro. Por isso como vamos amar com toda a nossa loucura se estamos mais k sujeitos a sermos espezinhados? Eu entendo mas não aceito. Porque comportamento gera comportamento e isto foi tornando-se um hábito. É necessário muita força e coragem. Hoje em dia somos uns cobardes em relação às gerações passadas... Eu reconheço isso. Mas também vou tentar mudar. Plo menos a mim. Algum efeito há de surgir :)

Mas olha de uma coisa estou certa. Eu gosto muitinho de ti meu Dani :P *

Anónimo disse...

Não podia haver melhor definição do amor.. Nem melhor descrição do knto mal fazemos e tratamos o amor

=/

esculapia disse...

explica lá o paradigma de fazer todo o sentido simplesmente "não compreender". cá por mim, não cedo. apaixono-me sem ser por questão "de práctica", só porque não resisto... e sou mais feliz assim, porque doo sem ficar magoada, vivo sozinha, triste, e sem dúvida mais acompanhada de quem vive feliz!
vês?! faz sentido! ;)

bju godo
mana gande:)